terça-feira, 4 de outubro de 2016

Referências

Que haver de falar agora?
um serial killer
à beira de uma execução virtual -
a frase original
em que lhe pediam um último pensamento no facebook;
a vida de trás para a frente,
resvalando uma morte encarneirada 
cheia da recusa de uma pérola a um porco.

Que haver de falar agora?
da mulher obstinadamente retalhada
quatro tentativas de suicídio e uma rosa no chão;
ou Paris no centro do Apocalipse:
milhares de Picassos reproduzidos em massa
adornando lares de dealers Napoleónicos
e prostíbulos de poetisas dedicados
a enternecer grotescos homens em miséria.

Que haver de falar agora?
agora que se acabou a infância
e é banal o medo, o escuro, o próprio pensamento
acerca do tempo atrapalhado pela cronologia
do que se finge, mas é sincero e discorda
do que se agride e é amor quase sempre.

"Onde nasce um nada cresce um pouco de tudo",
dizia o sentido obrigatório da existência;
uma teima muda num pranto com mais de duas décadas:
figuras mitológicas, pianos envelhecidos, Rockstars,
os anos 90 dentro de um globo de cristal:
flocos de neve caindo dentro da alma - e a alma
como se fosse um brinquedo pousado ao abandono.

Que haver de falar agora?

sábado, 1 de outubro de 2016

Guitarra (ou Alma) Portuguesa

Do som que nos apregoa
E nos dá ou tira a vida
Tocam as cordas do coração
E amarram a respiração à batida.

Que força tem cá dentro!
Só eu me rendo assim?
Só o meu silencio, benzido por Odin,
Te revela a obscura certeza do pranto.

E neste gesto sem fim
Me sugas para o inconsciente
Nesse colectivo de memórias perdidas
Nesse murmúrio rompante de desejos...

E eu continuo aqui
De lábios semi abertos
Feito entreposto de vidas futuras
Ou de passagens, por outros, pilhadas.

Se ao menos não houvesse o tempo
Em que o teu soar fosse verdadeiro...

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Euphoria

O relógio sem hora aponta o homem da manhã
escapo do tempo por vir - descomedida
da semente inventada para o vácuo:
há de nos minguar a memória ideal,
o principio adulterado de todas as quimeras finitas.

[Jamais seremos o sonho construído no lado mais frio
nem o nome longínquo adormecido na cama alheia]

Finjo a tua onírica balada
de olhos fechados contra a parede
temendo dormir um segundo mais
da minha inequívoca insónia milenar;

[Jamais nos pareceremos tanto com o final do Verão
nem tão pouco com a urgência quente de outra ilusão]

e o meu sorriso é uma cicatriz mentindo
as confidências dessas graves madrugadas
onde nunca seremos tão estranhos como amanhã
ou tanto da lembrança infante resgatada numa canção.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A Rã

Uma rã salta entre o habitat terreno e aquático
sem saber do lugar a que possa pertencer,
chamam-lhe a indecisa vida que leva - alguém
num mergulho repentino - ninguém
no silêncio da enseada.

 Vejo-a estática, em porcelana adornando o jardim
 finalmente mágica da indefinição dos ciganos

Uma medonha imobilidade decorativa dos pequenos lares,
das rãs pintadas de verde-relva
como se fossem natureza finalmente domesticada:
a rã inquieta eterna dentro do peito.

A esperança de encontrar a mão artesã
capaz de moldar a cardíaca irregular,
torná-la efectiva obra humana
repousando ilustrada paz doméstica.





quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Crazy in Love


Eu sei, baby, acerca de todas as tuas pinturas
artes que tomaste como tuas e minhas - foi outra
quantas lágrimas derramadas por ti enquanto dizia
"sou teu", agora importa-me se terás voltado atrás
da música ouvida,o tempo parado no lugar de alguém
um desleixo bravo no corpo de outra mulher
mais a infelicidade de trocar um nome pelo outro;
confundirás as voltas das divisões finalmente arrumadas
agora sem o enleio do caos que era como ninho
de orfãos desmedidos correndo e destruindo:
para nós, felizes brincadeiras de Romeu e Julieta
carinhos de ir à rua pela madrugada confortar-te o vazio
trazer-te mais pássaros feridos - com quem comiamos
bebendo da saliva um do outro, alimentando infetamente
o abandono de todas as produções com que te quis
e todas as paixões físicas que te eram dedicadas:
a nenhuma te entreguei com tanto amor - a ninguém
te quis cheia da vida latejando, agora sobre escombros,
um assombroso silêncio de Chernobyl entre nós.

Desfiladeiro

Trocar o desespero por idas até à tua alma,
deixa-me dizer-te acerca da eternidade
é qualquer poeta apaixonado por um abismo,
a réstia humana em que somos os dois:
desde o papel à epiderme vai um estreito desfiladeiro
olho para a queda mortal em que te tento encontrar
lá em baixo manadas de búfalos, correndo acelerado
o coração que vai sempre sentir o medo
desistente tentativa de saltar até ao teu abraço -
É verdade, fico como que escrevendo, mas sem anotações
tudo a torto e a direito num pensamento de linhas travessas
tinha o mapa desta metrópole, mas deitei-lhe fogo
do mesmo com que te anseio, num delirio caótico
frenético da cidade incandescente cheia
das divisões vazias em que somos alguns - tantos
no cumulo de querer tanto a ninguém de uma vez só:
insónias inteiras dedicadas ao salto por dar
uma vida que é como se fosse um arranha-céus
onde já nem valentia existe para o âmago final
tudo por consequência do beijo unilateral
a quem tenho por receio de haver alguma vez existido.