sábado, 30 de abril de 2016

Transeunte

Arde-me o suor e um corpo por curar a sensualidade das cidades
um homem na Almirante Reis que passou a ressacar, sem saber das horas
nunca há manhã seguinte para os homens em desespero
nem ninguém consegue parar a insónia dos sinais de trânsito.
somos todos transeuntes de um afecto comum, as ruas a direito,
mas são raros os acenos indiscriminados nas metrópoles:
ai de alguém querer tão longamente a um estranho
sem que lhe tentem levar o nada que lhes pertence
o tanto que custa a ganhar todos os dias,
que desaparece nas costas de alguém e se cruza de novo
sem dar conta de quem o rosto tão próximo e mundano
aquele que chega dilacerado de uma história pessoal
num sitio que é caótico de um silêncio resignado a coisas alheias
numa ferida que às vezes dói em coletivo.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Inexistência

O que se passou comigo, agora de olhar encostado
incapaz de terminar a tarefa a que te propuseste
cansada do nada que não termina, da espera desiludida
uma mulher não devia servir para mais, ninguém mais compreendeu
o grito que não tenho dignidade de fazer soar
e tantos beijos incapazes na boca para dar.
era contigo que sonhava naqueles dias lentos
e agora estou capaz de suar horas impossíveis
tragar de uma vez só uma espera inexistente.
que espécie de palavra me arrepia, quando a resposta
devíamos ser os dois noite fora insones, eu
e quantos relentos nocturnos à espera de poemas.
tanto que tinha para te contar, recordações quiméricas
das quais duvido e não tenho nem ideia de ter existido,
em que sonho me aconchego e não termino, a medo de mortes
e flores abandonadas às portas de um quarto sem luz.
olho para a lugubridade fingindo ver a felicidade
teço no meu corpo as mãos que ficaram num piano
a realidade parada que deixei num canto, as mãos de tudo
quanto era necessário na música que deixei no repeat
e lembranças da pessoa que não sou e faço por não mostrar
o homem que deixei a meio de um sorriso, num rosto de más-horas
ébrio, torpe, infinito.

domingo, 24 de abril de 2016

Trás-Os-Montes



Trás-os-Montes sempre foi a colónia mais longínqua do império,
Mas quando chegava a fome de carne para canhão, todos eram filhos
Da pátria, mesmo que fossem com pouca carne por causa das fomes
E dos Invernos que a capital nunca viu em Portugal continental,
Não havia sapatos para todos, mas balas para matar os inimigos
Da nação nas suas próprias casas, à farta, depois houve uma revolução,
Eu continuava a ter que acelerar no Inverno a bicicleta,
Se fosse demasiado devagar, parava no meio de um charco de lama,
E enterrava-me lá todo, lá na aldeia, mas eramos só uns garotos,
E ninguém se importava muito em acender mais umas velas
Quando um de nós atirava contra os cabos eléctricos descarnados
Uma vara de sombreiro desde um arco improvisado
Com um pau de castanheiro e um baraço dos fardos,
Tractores, sim, tive um, o meu pai fez as rodas de cortiça,
Eu improvisei o resto e foi a inveja da povoação,
Os de plástico vi já andava farto de bater punhetas em palheiros,
Trazidos das feiras da vila, parecia a capital na altura,
Sujos não andávamos porque a pele das mães se tinha habituado
Às geadas, e que sorte não ter havido uma guerra no nosso tempo,
Só ouvíamos as histórias deste que veio maluco da Índia,
Tinha sido a droga e eu a pensar que a Índia lá para além de Bragança,
Depois da Espanha onde uma vez por ano íamos comprar chocolates
E meias, até o meu avô era conhecido na Espanha, traficante,
Na altura dizia-se contrabandista, de meias, um criminoso perigoso,
Um inimigo do Império, claro, não foi a nenhuma guerra,
Uma vez enfrentou um javali por fome com um machado,
Fartou-se durante uma semana, mancou o resto da vida,
Mas nada disto interessa, amanhã é dia da liberdade
E eu aqui longe de todos os que me queriam fazer pedir,
Longe de todos que me diziam não me querer ouvir,
Porque senhor doutor lá de uma fortuna na Suíça,
Longe de todos os que filhos deste e daquele, que julgaram
Que podia roubar-lhes o poleiro, longe do acordar
Para poder ir dormir, para voltar a acordar e no fim
Pouco mais sobrar que para o bilhete de autocarro
Para ir ver a família em Agosto que veio lá de longe,
Do estrangeiro, coitados, quando eu podia ir ao café todos os dias.

24-04-2016

Turku

João Bosco da Silva


sábado, 23 de abril de 2016

Quanto De Ti É Já Defunto


Quanto de ti é já defunto ou rua escura numa aldeia quase deserta do interior, 
Quanto de ti te deixou e já não és senão o esquecimento da tua voz nos outros, 
Procuram-te no degrau que falham nas escadas de um prédio sem luz, 
Quanto de ti ficou nas páginas que visitaste sem o toque da saliva 
E dos dedos engordurados pelos dias, a quem te deste, diz-me e dir-te-ei quem és, 
Não te procures nos espelhos partidos dos outros, leva antes umas flores de plástico 
Que duram mais e com os olhos fechados contra o Sol de Agosto, 
Revisita o som do teu nome nos lábios que já secaram de ti, 
Quanto de ti é já defunto, o suor na testa do pai e terra revolvida no quintal 
E te dizem que agora ali o teu gato, o teu cão e todos os sonhos que não levaste. 

Turku 

23-04-2016 

João Bosco da Silva

domingo, 10 de abril de 2016

Ponto de Partida

Vai-se a ver e também nós
já fomos muito melhores,
desde o tempo em que não tínhamos
segredos e outras traduções adulteradas.
Se ao menos o 1% o fosse de outra coisa,
mas dá-me para escrever poesia
e ser imbecil nos tempos livres.
Chego a sofrer de honestidade
porque ao tempo certo
ainda consegues dormir perto de mim;
Se não fosse por causa da confusão
seria porque estamos demasiado sós
e ao que parece estamos de novo
no ponto de partida. Como te poderia
meu amor, se ao menos entendêssemos
que o nosso contexto está partido,
mas só a morte é irremediável -
que amanhã somos outra vez
um dia novo na vida um do outro.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Outra língua

Ando a coleccionar falhas noutra língua,
esqueci-me de falar e agora
os lábios restantes
são coisas que não entendo.
Se pudesse seria outro poema,
outro poeta nas mãos
de outra fonética.
Se pudesse realmente
faria tudo de novo
igual ao presente.
Ando a coleccionar falhas noutra língua
falei demais e agora
os lábios restantes
são coisas sem entendimento
Se pudesse seria outro poeta
nas mãos
de um homem melhor
Se pudesse realmente
quem seria eu?

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Great Gear

The greatest value of certain words is their money despondency.
All dilettante is a disposition on obstinacy
cradling a free messianic tone
full of verses walking without shoes.
A Persona does not sell,
the Persona is concerned with the change.
Intrigues system often with an empty stomach,
worried about a seal within
a fully philatelic society.
The Great Gear works with broken parts.
A tiny myopia seems to compromise the body:
permanent housing produces
and fails, like any other machine.
Vision gives equality to detail.
This is the physical mechanism generating specialists
by defect,
perpetuating the gap in the mill
that only individual abstraction is able to correct.
All poetry is a glass of Western water.
Should calm the spiritual thirst of their children,
governed in the public service provided by democracy
and protection for marginalized thinkers.
When the system evolves through death.
There’s the face of certain poets on marketing,
to finally be sold against their will;
to be read against teenage will
and remain
hatred inert characters