segunda-feira, 30 de maio de 2016

O Desenhador de Sóis: O meu coração


O meu coração é um boi que atravessa este campo quente com seus olhos húmidos
mais as moscas que o picam de cada lado das orelhas,
é uma aguarela de criança com os seus traços seguros
Que deixou pequenos restos de areia, terra e alguns pelos de pincel
no centro do sol - O meu coração é uma memória do sol em cada célula,
 uma vontade de rir, Tão quente e tão quente - de tudo e de tudo…


O meu coração é um campo de girassóis,
Um pintor de olhos grandes que desenha caminhos a lápis de cor,
as fontes, o feno, o guarda-rios mais a sua família feliz
e um grande sol central no meio da cartolina,
por ele bebo a jorros, com os olhos todos:
Com a vida inteira.

O meu coração é uma criança que tira catotas do nariz
E tem no bolso o lenço mais sujo e mais seco que o avô lhe deu
O meu coração é só meu coração e não tem iniciais nem nome nem roupa,
E bombeia a música para todo o lado como qualquer coração feliz
E dança e brinca e agora mesmo ele é uma enchente de nós todos.
O meu coração é das cores mais quentes, das cores do fogo,
Nele se beijam as memórias mais doces e os faroleiros descansam
Depois de dar luz a tantos barcos na noite mais longa do ano.

Olha então de frente a nascente disto tudo e enche-se de luz,
sou então um animal feliz e abro muitos livros;
deixo tudo sublinhado: as casas, as ruas, as paisagens
os policias, os cães policias, o que as pessoas dizem e contam,
os segredos e os que os guardam,
O meu coração deixa a vida toda sublinhada a marcador fluorescente,
E escreve em todas as margens, e apaga e reescreve e completa e une,
e deita-se ao fim da noite para descansar, completo e cheio como um pôr do sol,
saciado e feliz como um vento quente que faz tremer as folhas lá em cima
e nasce e nasce e nasce ainda a cada instante.



sexta-feira, 20 de maio de 2016

Um pequeno flyer acerca de um homem sábio

rasgo, recicla,
não tornar a vê-lo uma segunda vez
não me lembrarei nunca da sua voz única,
dedico-lhe um poema de uma conversa que escutei,
mas que só é minha às vezes
quando a noite se põe atrás dos prédios,
é a vida da janela invadindo
o conselho que julgo ter ouvido,
um livro oferecido, para sempre a carecer
da atenção imediata dos papeis distribuídos
em especial, aquele que nos cabe,
que arremesso contra a estante,
vulgar pormenor na decoração entristecida,
a forma da vida na transformação das coisas prováveis,
esvaindo-se um pormenor no rosto perdido
de quem estendia a mão,
rasgo, recicla.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Beijo Ido

Adoece-me a memória da ignorância, dos homens levados pela boca
num corpo inútil de mais palavras. Tinha esta ideia da felicidade,
encontrei-a no banco em que nos dedicámos à ausência, à má poesia,
sem a convicção da eternidade perdurando num sorriso, perturbados
ao ponto da força inerte: o teu corpo tombando no meu universo,
caindo no chão empedrado que emprestei à ideia de humanidade:
dois homens insones caminhando a despropósito de que avenida,
enquanto a noite bastasse pelo menos o vazio encontraria o seu fim.

Enfim seriamos, corpos distensos, boiando no Universo integral
dispersos num abraço sobre a fria atmosfera, embalados pela Laniakea
que nos separa de volta ao lugar onde já estivemos
regidos pela lei que nos aparta e a Lei que nos devolve;

para sempre arquitectura do vago encaixe entre as estrelas,
um mergulho absoluto na escuridão do que já foi
e no tanto em que tardámos escapar aos lugares idos:
tornámo-nos no beijo alheio do mesmo sítio
na indiferença de quem por lá passa.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Inventar Sorrisos



“This is our last embrace
Must I dream and always see your face
Why can´t we overcome this wall
Well, maybe it´s because I didn´t know you at all”

Jeff Buckley

E agora quê, agora que cada passo teu me sabe a derrota,
Por ser mais um ano a caminho de uma década perdida,
Cada sorriso que apenas te imagino, um corte na ferida da distância,
Agora que cada gota de ti me dói tanto quando evapora
E as palavras que quando às vezes me pousam na fome
Me parecem ter sido lidas num livro que não me lembro,
Nunca serei um Hemingway, só na sede ao chumbo,
Só por dentro te agarrei naquele jantar antes das férias do Natal,
Aquela noite sim, foi a despedida e só anos depois encontrei
No livro do Caeiro que me deste, uma dedicatória nas últimas páginas,
Serão essas as nossas páginas, tantos livros perderam o significado
Agora que os teus olhos há tanto tempo, tanto, longe das páginas
Amarelecidas da minha vida, abusadas pela passagem dos anos,
E agora quê, fomos um beijo violento contra todos estes anos
E quilómetros, momentos antes do bater de uma porta,
Um subir de escadas, o bater de outra porta e logo
O primeiro sorriso que te inventei antes de acenderes a luz,
Enquanto esperava lá fora a olhar para os pés indecisos,
Ela ainda volta, mas só o táxi chegou e lá fui inventando sorrisos
Nos teus lábios até ao cemitério de Paranhos e de lá até hoje.

18.05.2016

Turku



terça-feira, 17 de maio de 2016

Aguarela

Hoje preferia viver sem a consciência vaga dos pássaros;

voavam de volta às primaveras oscilantes, de novo o sol
rasgando de dentro para fora o vento, vi-o no teu cabelo,
um clarão sobre a íris fechando a paisagem benevolente
de par em par, finalmente libertos de um horizonte ideal.

acredita em mim, conheço-os de os ouvir partir,
chilream a conversa desmedida em que nos demorámos
nem todos voltarão na Primavera seguinte,
nenhum de nós tornará a pousar no mesmo umbral.

o pequeno galho em destroço, algures uma rua deste mapa,
dos olhos aniquilando a certeza dos panoramas
numa indefinição eterna de ser forma ou vida;
de estarmos os dois constrangidos numa pintura banal.




quinta-feira, 5 de maio de 2016

Grande Atrator

Laniakea ou O Paraíso Imensurável trata-se de uma teoria recente que redefine o nosso lugar no Universo. Sabe-se, das forças que contribuem para a distensão sideral das mais de cem milhões de galáxias viajando ao longo de quinhentos e vinte milhões de Anos-Luz, de um ponto gravitacional central ao qual chamaram de Grande Atrator. Foi o Terras que me chamou a atenção para esse comando supremo que invade sem querer a vida mais efémera. A minha janela dá para uma rua de movimento lisboeta, conheço bem a forma de um rosto desconhecido. A casualidade entristece-me, principalmente quando chove e a calçada fica escorregadia. Tenho sempre medo do Grande Atrator a cada passo que dou. Principalmente de decorar uma feição larga, um riso basto, um olhar melancólico. Um rosto novo de alguém que não lembra o de ninguém, mas que é de tantos. Sei que enlouqueço a pensar nestas coisas. Sei que volto à compulsividade da Between the Bars, volto a um par de olhos num lado qualquer, indefinida numa personalidade que me é omissa.

A minha mãe faz questão em lembrar-nos de um amigo que agora está morto. Um tipo louco do Porto que sempre pareceu entender-me bem demais. O Miguel tinha um barco chamado Corto Maltese e nós tínhamos uma música comum, a I Still Can't Sleep do Bernard Herrmann. Queixava-se muitas vezes por mim, porque não bebia um copo de vinho, porque se haveria de negar assim a alguém o prazer mais comum e mortal? “Deixem o alter-ego viver”, dizia à minha mãe, mas era o mesmo que nada. Eu sentia o conforto da sua insónia permanente e já completamente anestesiada cai num sono confuso perto do seu regaço. A sua mão abraçava-me cheia das coisas que sabia, mas que não esclarecia. Lembro-me que o conheci muito miúda e naquela altura fiz as contas com os dedos para verificar se éramos tão assombrosamente distantes. Estava longe de saber que nos parecíamos de forma tão igual quando éramos ambos jovens ou quando seremos ambos tão velhos.

O Miguel tinha as histórias mais fascinantes com mulheres, fazia lembrar um Bukowski, mas ébrio de vinhos portugueses e geografias ribeirinhas. Tinha a ideia de oferecer uma ilha completamente deserta a um amigo chamado Filipe que na altura, sem saber, vivia uma depressão continua e miserável. Nessa altura a única pessoa de quem me lembrei para me ajudar a descobrir a ilha para o meu amigo foi o Miguel. Telefonei-lhe, formulando o estranho pedido que ele aceitou como se tivesse vindo de uma cabeça particularmente sã. Disse-me de imediato que podíamos deixar o meu amigo nas Berlengas, que ele só tinha que preparar o material de campismo e o espírito para uma verdadeira solidão. É fácil estar na infelicidade do lar, onde há sempre uma televisão, um computador com acesso à internet e os mais diversos estímulos familiares a quem podemos deixar a culpa da miséria individual. O meu amigo que se dizia tão deprimido e farto da vida cosmopolita foi incapaz de se deixar levar pela sua própria ideia mirabolante que eu me tinha dado ao trabalho de organizar. Liguei de novo ao Miguel que me disse logo que eu não ia a lado nenhum com rapazes tristonhos e convidou-me para ir ter com ele, para fazermos as vezes da terapia destinada a outro homem. Acabei por ter de ser eu a organizar o material de campismo, comprar um bilhete de ida para Peniche e ter de me entender com uma aventura que nunca me foi prometida. Pela viagem de caminho pensava no Filipe, em como estava a viver o sonho de que ele estava incapaz. Uma ilha deserta.

Quando cheguei encontrei o Miguel sentado dentro de um descapotável. Beijei-lhe o rosto como se fosse carinho de filha e ele ligou o auto-rádio na estação que passava continuamente os grandes clássicos do Jazz. “Então Nônô preparada para a desintoxicação da vida urbana?”. “Da vida urbana e das drogas que me dão para andar feliz”. “Também eu já fiz milhares de vezes essa cura, é sempre diferente de cada vez que as experimentas. Primeiro são os sintomas físicos que dão cabo de ti, a única forma de parar os suores frios e as tremeduras é com banhos de mar frio. Depois a vida que te esqueceste de viver enquanto estavas intoxicada, cai-te em cima como se fosse impossível de viver. Provavelmente pensarás no suicídio, nas coisas impossíveis que ficaram para trás…”. “Não é a minha ideia morrer pelo caminho”, disse-lhe, ainda sem saber das noites escuras do Oceano. “Não te preocupes, nenhum de nós os dois foi feito para morrer através das suas próprias mãos, o suicídio é só um tesão”. 

terça-feira, 3 de maio de 2016

Vazio Penúltimo

Cheira a carne por comodismo, um animal à beira da estrada
pastando um andar compulsivo, carente de cascos por dançar
um estranho na rua pedinte de uma mulher nova
levando o cigarro alheio com que teima mentir
a pista em que se lança e por onde cai vertical
a quem toda a gente pára para ver o preço e desdenhar:
daquela estirpe há muitos e não servem
na boca de um filha mimada, na pele que teme o sol
é odor execrável da rua contígua a um free lunch:
o pedaço sujo que metem à boca sem carinho
desfazendo-se no arrepio falso de um estômago satisfeito
do amor que é necessário, mas alguém tomou como escravo
à estranha necessidade de foder numa cama e com a luz apagada
um chafurdanço num vazio penúltimo, num corpo sem pavio
incensário de mulheres resignadas, debruçadas num altar erecto
todos eles pedindo pelo mesmo: comida quente todos os dias
por causa de um lugar cá dentro, impossível de rechear
de tragar continuamente até serem dias novos.