sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Euphoria

O relógio sem hora aponta o homem da manhã
escapo do tempo por vir - descomedida
da semente inventada para o vácuo:
há de nos minguar a memória ideal,
o principio adulterado de todas as quimeras finitas.

[Jamais seremos o sonho construído no lado mais frio
nem o nome longínquo adormecido na cama alheia]

Finjo a tua onírica balada
de olhos fechados contra a parede
temendo dormir um segundo mais
da minha inequívoca insónia milenar;

[Jamais nos pareceremos tanto com o final do Verão
nem tão pouco com a urgência quente de outra ilusão]

e o meu sorriso é uma cicatriz mentindo
as confidências dessas graves madrugadas
onde nunca seremos tão estranhos como amanhã
ou tanto da lembrança infante resgatada numa canção.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A Rã

Uma rã salta entre o habitat terreno e aquático
sem saber do lugar a que possa pertencer,
chamam-lhe a indecisa vida que leva - alguém
num mergulho repentino - ninguém
no silêncio da enseada.

 Vejo-a estática, em porcelana adornando o jardim
 finalmente mágica da indefinição dos ciganos

Uma medonha imobilidade decorativa dos pequenos lares,
das rãs pintadas de verde-relva
como se fossem natureza finalmente domesticada:
a rã inquieta eterna dentro do peito.

A esperança de encontrar a mão artesã
capaz de moldar a cardíaca irregular,
torná-la efectiva obra humana
repousando ilustrada paz doméstica.





quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Crazy in Love


Eu sei, baby, acerca de todas as tuas pinturas
artes que tomaste como tuas e minhas - foi outra
quantas lágrimas derramadas por ti enquanto dizia
"sou teu", agora importa-me se terás voltado atrás
da música ouvida,o tempo parado no lugar de alguém
um desleixo bravo no corpo de outra mulher
mais a infelicidade de trocar um nome pelo outro;
confundirás as voltas das divisões finalmente arrumadas
agora sem o enleio do caos que era como ninho
de orfãos desmedidos correndo e destruindo:
para nós, felizes brincadeiras de Romeu e Julieta
carinhos de ir à rua pela madrugada confortar-te o vazio
trazer-te mais pássaros feridos - com quem comiamos
bebendo da saliva um do outro, alimentando infetamente
o abandono de todas as produções com que te quis
e todas as paixões físicas que te eram dedicadas:
a nenhuma te entreguei com tanto amor - a ninguém
te quis cheia da vida latejando, agora sobre escombros,
um assombroso silêncio de Chernobyl entre nós.

Desfiladeiro

Trocar o desespero por idas até à tua alma,
deixa-me dizer-te acerca da eternidade
é qualquer poeta apaixonado por um abismo,
a réstia humana em que somos os dois:
desde o papel à epiderme vai um estreito desfiladeiro
olho para a queda mortal em que te tento encontrar
lá em baixo manadas de búfalos, correndo acelerado
o coração que vai sempre sentir o medo
desistente tentativa de saltar até ao teu abraço -
É verdade, fico como que escrevendo, mas sem anotações
tudo a torto e a direito num pensamento de linhas travessas
tinha o mapa desta metrópole, mas deitei-lhe fogo
do mesmo com que te anseio, num delirio caótico
frenético da cidade incandescente cheia
das divisões vazias em que somos alguns - tantos
no cumulo de querer tanto a ninguém de uma vez só:
insónias inteiras dedicadas ao salto por dar
uma vida que é como se fosse um arranha-céus
onde já nem valentia existe para o âmago final
tudo por consequência do beijo unilateral
a quem tenho por receio de haver alguma vez existido.

domingo, 11 de setembro de 2016

Parágrafos

Blindada rotina
(Que me faz sossegar
E me retira o esplendor
Dos lugares comuns):

Sê leal à tua ruindade
Apaga-te da vida dos mortais
Que dependem uns dos outros
Para nem saber imaginar.

Lutar! Lutar sempre...
O melhor só chega no fim
Quando todas as vivências de aglutinam
E as derrotas não perturbam ninguém.

Passar à fase em que se existe,
Não fruto do acaso,
Vingar a arte da vida
Numa performance eterna de experiência.

E quando não há mais para caminhar,
Nas memórias, mergulhar!
E adoptar novos sentidos
Nos palcos que, pela vida, foram vencidos.




sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Medo (IV)

A casa enfeitada de cristais vários
Desobedece às leis do medo
Não me apoquenta a desordem
Em que tudo jaz serenamente.

Eu, inquieto, sem interacção,
Imóvel, despertando a curiosidade dos objectos,
Todos calados, a fingir que não pensam
À espera da reacção amedrontada.

Nisto, assumo! Faço! Dou Vida!
Porque de mim nasceu o medo
E nele reconfortado cresci
Aquele que temia ser, me tornei.

Nunca conceberei algo, de ti, liberto
Mas medo: minha apoteose fulgente
Desfaz esta minha fé de ti
Relembra-me o que é morrer feliz!

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Poema com Anos de Atraso

costumavas escapar no rosto em que te parecesses
qualquer um pedestre caminhando os teus pensamentos
um homem num milhão sorrindo a inequivoca promessa

do dia a que chegámos

a manhã depois do inferno
onde somos um cá dentro desde a tua janela
e o sol brotando nudez à conversa

chegado o tempo de colher todas as sementes tristes,
de encantar uma bela mulher sem chão,
a que se escapa no rosto em que se parece

e que finalmente retorna

à pátria querida de todos os desterrados,
cheia do testemunho ausente
da longa jornada até ao humanamente longínquo

um nada de Primavera mais remoto ainda
cristalizado no peito intemporal
de todas as palavras correspondidas.